Todos os dias nos tribunais brasileiros, desde que a Carta Magna de 1988 está em vigor, os operadores do direito se deparam com demandas judiciais envolvendo os servidores públicos e seus direitos estatutários sendo questionados, muitas vezes encontrando como óbice prejudicial, a chamada prescrição do fundo de direito.
De um lado os autores, argumentando pela relação de trato sucessivo de seu incorreto enquadramento, advindo de uma lei que já decorreu 5 anos da entrada em vigor; Do outro lado os membros das variadas advocacias públicas, defendendo seus entes “empregadores”, rebatendo que não se trata o incorreto enquadramento do autor de uma relação de trato sucessivo, mas sim de uma relação, que teve alcançada a prescrição do fundo de direito, tendo em vista a ausência de qualquer questionamento dentro do prazo de prescrição quinquenal.
Para que o leitor, nem sempre operador do direito, entenda melhor a problemática, devemos explicar sobre os institutos prescricionais “trato sucessivo” e “fundo de direito”
- DA PRESCRIÇÃO
A prescrição afeta a pretensão, perdendo-se não o direito em si, mas sim a perda do poder de reação contra a violação do direito. Segundo o Decreto Federal 20.910/32, as dívidas do poder público prescrevem em cinco anos, contados da data do fato ou ato do qual se originarem, sendo esta, a chamada prescrição quinquenal.
Nessa senda, devemos diferenciar duas formas de prescrição, qual sejam, a prescrição de trato sucessivo e a prescrição do fundo de direito.
Em relação a prescrição de trato sucessivo, deve se ter em mente, que a prescrição só atinge algumas parcelas de seu direito de crédito. Há apenas a perda das parcelas anteriores a 05 anos, tendo em vista que a lesão se renova enquanto perdurar a situação causadora da lesão, no caso em questão, enquanto o servidor estiver enquadrado incorretamente a lesão está se renovando. Imaginemos que esse servidor nunca tenha requerido seu reenquadramento em processo administrativo perante o órgão ao qual labora, nesse caso poderá a qualquer momento pleitear a verba judicialmente, mas não receberá pagamentos retroativos para além de 05 anos anteriores à data da propositura da ação. A mesma solução será dada caso ele pleiteie a verba, mas a administração se omita quanto a seu requerimento (nunca decida).
Já em relação a prescrição do fundo de direito, deve se ter em mente, perda integral do poder de reação em relação a lesão sofrida. Exemplificando, imaginemos que um servidor julga ter direito ao seu reenquadramento, e então requer que a administração proceda seu reenquadramento. A administração NEGA EXPRESSAMENTE O PEDIDO, ao argumento de que o servidor não preenche os requisitos para ser reenquadrado. Como houve negativa expressa, nasce o prazo de 05 anos para o servidor impugnar a decisão, se não o faz perde o próprio direito.
Dispõe o enunciado da Súmula nº 85 Superior Tribunal de Justiça:
Nas relações jurídicas de trato sucessivo em que a Fazenda Pública figure como devedora, quando não tiver sido negado o próprio direito reclamado, a prescrição atinge apenas as prestações vencidas antes do quinquênio anterior à propositura da ação
Assim a jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, extratificada na Súmula 443, vejamos:
A prescrição das prestações anteriores ao período previsto em lei não ocorre quando não tiver sido negado, antes daquele prazo, o próprio direito reclamado ou a situação jurídica de que ele resulta.”
Os enunciados sumulares têm indiscutível consistência lógica, ao fazer alusão à prescrição das prestações “vencidas” ou “anteriores”, sem qualquer referência à prescrição da própria ação. Realmente, enquanto não há exigência substancial, deduzida pelo servidor em face da Administração, e resistência caracterizada pela “negativa” em satisfazê-la, não há controvérsia, não tendo sentido falar-se em prescrição.
- DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DO SEU DEVER PRINCIPIOLÓGICO DE LEGALIDADE
A relação entre o servidor e o Estado é de índole estatutária, pelo que não pode o Estado ter outro interesse senão em que as relações jurídicas para com seus servidores sejam exatamente aquelas que resultam da lei. Para quem vislumbra, e proclama, no ato administrativo o atributo da legitimidade, cobrindo-o inclusive com o manto de uma presunção legal (presunção de legitimidade), não pode admitir que a Administração pactue com uma situação contrária ao direito. Ao contrário, ela tem o dever de ex propria autoritate, ajustar-se à lei, corrigindo eventuais distorções que se verifique em suas relações com seus servidores, independentemente de qualquer transcurso temporal.
Vale a pena transcrever as seguintes observações do Min. Cunha Peixoto:
A relação entre o funcionário e o Estado, como é pacífico na doutrina, é estatutária; e isto leva admitir, em tese, imprescritibilidade de seu direito, já que este direito está preso a modificações necessárias ao interesse do estado. O que comanda é o interesse público, se este leva a conceder determinada situação ao funcionário, este direito não precisa ser pleiteado, nem mesmo invocado. A administração deve enquadrá-lo na nova situação. Daí não se poder dizer que o direito do funcionário à nova condição atribuída por lei prescreve, se a administração não o coloca nesta posição e ele não reclama dentro de cinco anos. Ora, no caso dos autos, cumpria à Administração agir de ofício compatibilizando a situação de cada funcionário de acordo com a lei posta em vigor, se ficou inerte, isso não corresponde a uma negativa. (cf. Jesus Costa Lima, Comentários às Súmulas do STJ, v. 2, p. 137).
A prescrição existe, mas para legitimar juridicamente situações de fato legítimas, e não para perpetuar situações ilegítimas, dando-lhes aparência legal. Também não é a prescrição um salvo conduto para que a Administração transite impunemente pela ilegalidade, e, muito menos, um manto mágico a cobrir as ilegalidades cometidas pelos agentes públicos à sombra da lei.
Se, nos termos do art. 5º, XXXV, da Constituição, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” vê-se que, nas relações funcionais entre o Estado e seus servidores prescrevem apenas as prestações devidas nos cinco (5) anos anteriores ao exercício da ação e nunca o direito de reclamar, judicialmente, que se reconduza aos trilhos da legalidade a situação jurídica que se mostre divorciada da lei.
Em outros termos, a chamada prescrição “do fundo do direito”, em sede estatutária, não passa de uma forma indireta de o Poder Público, por ato omissivo, obter resultado equivalente ao da revogação da lei; ou seja, a lei existe porque não foi revogada, entretanto, o servidor não pode pedir a sua aplicação se não o fizer no prazo de cinco (5) anos, em que a Administração se fez omissa. A justiça justa deve beneficiar aquele a quem a lei reconhece o direito e não aquele que o descumpre. Entender-se de outro modo, é reconhecer à Administração o proveito da própria torpeza.
- DOS JULGADOS RECENTES E DO INTERESSE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Apesar de toda a situação se demonstrar plenamente norteada, os tribunais vivem debates diários sobre a aplicação da prescrição de fundo de direito e da prescrição de trato sucessivo, em demandas envolvendo o enquadramento de servidores públicos.
O que vem acontecendo recentemente é que, em uma nítida tendência de respeito aos anseios e interesses da administração pública, os tribunais têm tomado medidas e posicionamentos que obstaculizam o gozo do direito dos servidores, em total rota de colisão com os princípios do Estado de Direito, como ocorreu recentemente no Tribunal de Justiça de Goiás, ao acolher o Incidente de Resolução de demandas repetitivas (IRDR), suscitado pelo Estado de Goiás, em decorrência da propositura de diversas ações declaratórias, cumuladas com pedido de cobrança, em desfavor deste ente público. Essas ações objetivam o pagamento de resíduos salariais derivados de progressões funcionais previstas na Lei Estadual nº 12.361/1994, revogada pela Lei Estadual nº 13.909/2001 (atual Estatuto do Magistério).
Ocorre que essas demandas geraram decisões divergentes dos órgãos fracionários do TJ-GO, seja reconhecendo o direito à progressão, com efeitos retroativos, tendo por premissa uma relação de trato sucessivo, seja aplicando-se o entendimento de que as pretensões se encontram fulminadas pela prescrição e pela inexistência de direito adquirido a regime jurídico.
No entendimento do Tribunal, a prescrição quinquenal começou a fluir da vigência da lei que revogou o benefício, ou seja, 30/11/2001 (60 dias após sua publicação, cf art. 218), com o rompimento da relação de trato sucessivo, donde se deduziria que, aos 30/11/2006, as pretensões em debate teriam sido fulminadas pela prescrição do fundo de direito, segundo o princípio da actio nata.
Caro leitor, não se assuste, todo esse “sururu” não foi em vão, afinal de contas, a Administração Pública Estadual descumpriu com um de seus princípios basilares, no caso a legalidade, mas tudo com vistas a dar o melhor funcionamento possível à máquina pública, como podemos ver do trecho da entrevista de uma procuradora do estado de Goiás, em que a mesma diz[1] “A economia para o Estado é não só financeira, mas com o trâmite de processos, pois estima-se mais de 2 mil processos em todo Estado envolvendo essa matéria”. Segundo estudos da Gerência de Cálculos e Precatórios da PGE, se acolhido pleito semelhante dos mais de 26 mil professores estaduais, o impacto ao erário seria de R$ 1,059 bilhão, com referência aos servidores ativos, e de montante superior a 794 milhões em relação aos inativos. A administração não ia deixar essa “passar”, não é mesmo?
- CONCLUSÃO
Como se vê, nas relações jurídicas materiais entre o funcionário público e o Estado, o que prescreve são apenas as parcelas não cobradas nos 5 (cinco) anos anteriores ao exercício da ação, mas não o próprio fundo do direito.
Não há Estado ou Administração Pública se não houver base principiológica e respeito à legalidade. Como pode a administração pública cobrar observância à legalidade no exercício das funções de seus agentes, sendo que a própria administração pública, por meio de seus administradores, não age na estrita legalidade para com àqueles?
[1] Disponível em: https://www.rotajuridica.com.br/pedidos-de-diferencas-salariais-relativos-ao-antigo-estatuto-do-magisterio-estao-prescritos-decide-tjgo-em-irdr/